sábado, 4 de junho de 2011

Memória fraca


Moisés estava muito cansado, desanimado e exausto de “carregar todo o povo”, o que era pesado demais. [Nm 11.14] As pessoas lhe cobravam as coisas e isso o sobrecarregou tanto que chegou ao ponto de pedir sua própria morte a Deus para que não enxergasse sua miséria. 

Entre um e outro momento, lá estava Israel se lamentando e perguntando por que saiu do Egito. Uma memória fraca lhe fazia esquecer um passado escravizado nem tão distante. Isso também nos atinge algumas vezes; quando a situação “aperta” ao invés de pensarmos que aquilo é preciso e faz parte do caminho para nos aproximar de Deus, lembramos das coisas boas que tínhamos no passado com uma nostalgia que provavelmente irrita a Deus.

Quantas vezes Deus se irritou com essa postura de Israel...O Antigo Testamento nos fala muito disso. Na perspectiva bíblica, olhar para trás só serve para aprendizado e memória de libertação. Porque Deus instituiu festas para que o povo se lembrasse do Deus que livra do Egito e supre as necessidades materiais. Ao passo que vemos o quanto o Senhor desejava que o povo seguisse rememorando a libertação, mas caminhando firmemente para a promessa.

“[...], todavia, o meu justo viverá pela fé; Se retroceder, nele não se compraz a minha alma.” [Hb 10.38] Nenhum sofrimento pode te paralisar; Deus agirá dentro dele. Sua fé não pode estar atrelada a acontecimentos felizes. Você precisa praticar incessantemente o exercício de não se desesperar e começar a achar que Deus não vai mandar alimento só porque ele não veio na hora que você queria. “Muitas vezes, nós não somos atendidos de imediato em nossos pedidos, pois precisamos crescer na comunhão com o Doador das dádivas. Somos transformados para um novo posicionamento existencial.” [Paulo R. Rückert, Viver é lutar...Amparado por Deus!].

Deus o ajude a sempre descobrir as belezas do que há mais a frente, e não ceder a tentação de rememorar o ponto de escravidão. A fé em Cristo é resistência ao escravismo, ela trabalha sempre na perspectiva de transformação.
Hev









quinta-feira, 26 de maio de 2011

A tentativa de manipular o Sagrado


Segundo Von Rad, quando fala da “atualidade da idolatria”, nós, cristãos, corremos o risco de configurar Deus a nossa imagem, de crer em mitos e adorar imagens. Os sistemas religiosos tendem a atar as mãos de Deus. E quando pensamos estar adorando verdadeiramente ao Deus único, estamos prestando um culto ao ídolo que fabricamos.

Israel queria manipular Deus por causa do episódio do Êxodo. Queriam abusar do privilégio que tinham, do cuidado que Deus tinha por eles. Deus os tirou da escravidão do Egito e agora eles tinham uma falsa segurança. O profeta Amós denuncia este sentimento de privilégio que Israel tinha. Deus falou através do profeta que da mesma forma que Ele os tinha tirado do Egito, Ele também havia tirado os filisteus de Creta e os sírios de Quir. (Am 9:7) O que Deus queria mostrar para o seu povo é que não adiantava ter o conhecimento de quem eram, o povo escolhido, e terem confissões de fé. Deus queria que eles vivessem de acordo com suas confissões.

Também quando Deus faz uma aliança com seu povo, Israel se sente novamente muito privilegiado e não teme os castigos de Javé. O povo entendia que aquela aliança era um compromisso incondicional, podiam fazer o que quisessem, Deus continuaria sendo sua segurança e a aliança não seria rompida. Mas Deus os chama a atenção dizendo que se Ele havia escolhido aquele povo dentre todas as nações da terra, então pediria conta a eles. (Am 3:1-2)

Outra forma de manipulação de Deus era o templo como espaço sagrado. Em momentos de tensão o povo depositava sua credibilidade no templo do Senhor, acreditando que ele garantiria a segurança de Jerusalém. Os judeus entendiam o templo como um covil de ladrões, onde as pessoas podiam se refugiar depois de terem roubado ou cometido algum crime.

O profeta Jeremias joga por terra esta falsa esperança e Deus não tolera esta mentalidade de seu povo, porque Deus não se compromete com espaços físicos e sim com a conduta das pessoas. Deus diz o povo queimava incenso a Baal, roubava, adulterava, seguia os deuses estrangeiros e depois entrava no templo dizendo que estavam a salvo. Deus disse para eles atentarem para o que havia acontecido com o templo de Siló, que Ele havia destruído por causa da maldade do povo. (Jr 7:1-15)

Os contemporâneos de Amós esperavam confiantes no Dia do Senhor, o dia em que Ele se manifestaria de forma grandiosa e exaltaria o seu povo, este pensamento carregava uma série de privilégios e falsas esperanças. “Ai dos que anseiam pelo dia do Senhor! De que vos servirá o dia do Senhor se ele é tenebroso e sem luz?” (Am 5:18)

O cristianismo contemporâneo não difere muito desta realidade. Estamos cada vez mais íntimos do determinismo para Deus e omissos para com nossa responsabilidade de povo chamado. Deus não nos isentará de nossas obrigações como servos nem tampouco aceitará o estilo de adoração que oferecemos como barganha. Ao idealizarmos um Deus à nossa imagem e semelhança levamos para o mundo a idéia de um Deus que está mais interessado no aqui e agora e que se deixa manipular por filhos sem conhecimento. Mas Deus continua tendo o domínio das situações e sempre nos chamando para a conscientização do que temos feito e sua repercussão na sociedade.
Hev



quarta-feira, 18 de maio de 2011

Prometeu e o nosso imediatismo


Eugene Peterson, autor de Um Pastor segundo o coração de Deus acredita que a melhor narrativa para expressar a mudança trágica que houve na humanidade, da perda de limites e desrespeito aos “deuses” foi escrita por Ésquilo, o mito de Prometeu. Muito utilizado pelos antigos como forma de advertência sobre o poder, e perdido ao longo dos anos, pois a nossa sociedade apregoa cada vez mais uma vida sem limites, fugindo da compreensão trágica das coisas.

Prometeu, era um dos deuses do Olimpo. Ele não se conformava que os humanos pudessem conhecer o dia de sua morte. Pois vivendo assim, eles não tinham muitas ambições e criavam em suas mentes um grande limite marcado no calendário. Irado com Zeus, ele fez com que os mortais não soubessem mais o dia de sua morte, colocou nas pessoas esperanças sem limites e roubou o fogo dos deuses e deu aos homens. Agora eles não sabiam mais quando iam morrer, faziam planos e tinham projetos para o futuro. Tinham sonhos absurdos e cegos. Não tinham mais noção de fim. Estavam seguros de si, e não precisavam muito dos deuses, pois agora possuíam o fogo e podiam criar o que quisessem. O homem foi se tornando cada vez mais independente e seu avanço tecnológico deu-lhe cada vez mais poder. Zeus irou-se com Prometeu e acorrentou-o numa rocha e todos os dias ele era ferido pelas aves. Mas Prometeu não se arrependia de seu feito.

Peterson observa que Prometeu deu aos homens toda a tecnologia dos deuses, mas não a sabedoria. O homem foi se perdendo cada vez mais em seus próprios desejos absurdos e cobiças. A intenção de Prometeu pode ter sido das melhores, no entanto, deu-lhes uma liberdade quem eles não estavam preparados para receber. E, como todos que se oferecem e se dedicam ao outro, sofreu conseqüências danosas todos os dias.

Muitas vezes nós queremos ser a resposta imediatista das pessoas, proporcionar a elas aquilo que elas dizem precisar, solucionar seus problemas, dar a elas prontamente aquilo que está ao nosso alcance. Mas nos esquecemos que Deus tem um trabalhar pessoal na vida de cada um e nós não sabemos qual é o tempo de Deus para elas. Acabamos por incentivar o imediatismo e a superficialidade. Nesse sentido, a oração fica sem lugar, pois, Deus não nos responde quando queremos, mas no tempo Dele. Então as pessoas recebem orientações concisas, que têm um efeito paliativo e de manutenção. A dor passa por alguns instantes e quando volta, já está estabelecida a relação de dependência entre elas e nós.
 
A oração é um ato de disciplina, espera e perseverança. Por mais que nosso coração seja solidário, existem coisas que não cabe a nós fazer e devemos conscientizar as pessoas de sua fragilidade e de que o amanhã pertence a Deus, firmando a idéia de limite. Quando nos desfazemos da tensão de ter que libertar as pessoas, ficamos livres para andar lado a lado com elas, num movimento de cura que atende a vontade e tempo divinos.
Hev

quinta-feira, 12 de maio de 2011

O Deus que dá vida no deserto

Fala-se muito de deserto em prédicas. No deserto “o povo libertado tem de libertar a si mesmo, para entregar-se a Deus na aliança” (SCHÖKEL). É um lugar onde se testa a esperança, onde se retira para orar, onde se precisa ter a noção de grupo e saber lidar com o outro para sobreviver, onde não se pode parar para estabelecer morada fixa, é lugar de feras e escuridão, frio de noite e calor intenso ao dia. Ali Moisés se encontra em EU SOU e recebe uma responsabilidade (Ex 3) e João Batista clama em tom profético o arrependimento. (Mt 3.2)

Jesus após o batismo, cerimônia de justiça e sinal de purificação, poderia estar no deserto com mais alguém como no Getsemâni, momento difícil, mas foi guiado sozinho pelo Espírito. O texto diz que o Espírito levou-o ao deserto “para ser posto à prova pelo Diabo” (Mt 4.1). Havia um propósito naquilo, Jesus é provado como todos os homens. Sozinho, ele fica entre sua carne, suas emoções, a falta de convívio com outras pessoas e tem apenas a Deus para falar. O Diabo aguarda com paciência o momento oportuno para abordá-lO.

Quando Schökel fala que o povo libertado devia se libertar de si mesmo, fala do povo guiado por Moisés. Não adiantava ser apenas liberto do Egito, o Egito precisava se despedaçar dentro deles, e eles não queriam isso, estavam apegados demais às práticas e vida anterior. A maior libertação não era sair de um lugar como escravos e ir para outro como povo eleito, mas verdadeiramente pensar e agir como povo eleito. O status não bastava, eles precisavam ter um encontro verdadeiro com Elohim.

Erich Zenger em O Deus da Bíblia, p. 11-29 se refere a Deus como “o Deus que dá vida no deserto”, ele possibilita vida em meio às condições externas e contrárias. Javé faz com que Israel colha a porção que cai do céu “a cada dia” (Ex 16) provando assim a confiança no suprimento; desce para falar e entrega a tábua com decálogo no Sinai para “estar perto do seu povo como aquele Deus que impede a destruição ameaçadora.” Ele é o Deus encontrado justamente no caminho e não fora dele. Deus não estava reservado para a terra prometida, mas estava andando com Israel e se revelando no caminho. “Deus preenche toda a criação e, no entanto, ele não está preso a lugar nenhum e não está cercado por coisa alguma.” 

Javé deixa o povo eleito andar e andar. Supre suas necessidades, mas os deixa andar. Era preciso olhar para dentro de si, para avaliarem seus desejos e decisões e alcançar nova identidade em EU SOU. Não vamos parar no deserto para pensar em alguém, interceder dias a fio por um doente nem apenas com intuito de crescermos estritamente no campo espiritual, mas para olharmos para nós mesmos e lidarmos com quem somos intimamente.

No deserto cria-se responsabilidades, assume-se dependência total de Deus, percebe-se quem é de verdade e qual o potencial para sobreviver às lutas. Quem tenta adiá-lo, não consegue firmar os passos. Deus nos faz ficar humildes e conhecer melhor nossas forças e dificuldades. Mais do que tudo vemos quem somos diante de Deus, porque no cotidiano vemos com facilidade quem somos diante do trabalho, dos relacionamentos, dos planos, etc. Mas no deserto, muitas coisas ficam em segundo plano e Israel, sem saída, chega ao ponto que Deus queria: dependência total. Quando se está num leito de hospital pouco importa ter reprovado um semestre na faculdade, a dor incomoda mais.  

Se você passa por alguma luta, não recue. Nem tampouco adie o momento de olhar para si mesmo diante de Deus, porque é só assim que nos conhecemos de verdade. Não querer aceitar a luta é insegurança e enganar a si mesmo com outros artifícios. Se você ama a Deus, sabe que Ele é o Deus do caminho que anda com você. Existe um propósito nisso e Deus deseja que você não fique dando voltas, mas estabeleça uma aliança de amor com Ele, de maneira que suas feridas sejam curadas e você encontre sabedoria para decisões.
Hev




terça-feira, 3 de maio de 2011

Deus trabalha perfeitamente

Hannah Whitall Smith em O Segredo de Deus para a Felicidade, p.183 cita George Macdonald:
“Tu trabalhas perfeitamente. E mesmo que pareça que algumas coisas não estejam indo bem, isso acontece por que elas são tão profundamente amorosas e tão grandemente sábias. Minha sabedoria, nem chega a ser sonho; meu amor, ralo e frágil; Tu envolves tudo, e torna-os perfeitos.” O trabalho de Deus e Suas construções em nós são perfeitas.
Nos frustramos muitas vezes, por estarmos na situação de Jairo com a filha no leito, enquanto Jesus para e observa que alguém o tocou porque Dele saiu virtude. A vontade talvez seja dizer “Jesus, minha filha está morrendo, seja mais rápido”, mas, Deus trabalha perfeitamente e quando não faz do jeito que você espera, Ele faz de outro muito melhor do que você espera. Você deseja apenas cura, e Deus talvez deseje fazer milagre.
Piper em Em busca de Deus, p.17, diz que “a realidade é como um mosaico, as partes podem ser feias em si, mas o todo é belo”. Até os propósitos mais “feios” de Deus têm um objetivo sereno e eterno. Se você está atrelado ao pensamento e vida de Deus, então não deve enxergar os acontecimentos como catástrofes. De suas mais demoradas lágrimas nascerá seu maior ministério e você aprenderá a pendurar o sentido de sua existência no cabide certo.
Hev

terça-feira, 26 de abril de 2011

Portadores espirituais

O homem é encantado pelo belo e perfeito. Não compramos um vaso apenas para pôr flores, mas porque ele é delicado, possui uma cor bonita e combina com o ambiente; nós vamos além do necessário.

Existe um histórico de exclusão. No Antigo Testamento havia restrições bem claras para coxos e enfermos e os cordeiros imperfeitos não serviam para expiação de pecados. Textos do século XIV remontam uma história de inquisição em que dementes mentais e portadores de necessidades especiais estavam na linha de pessoas torturadas e flageladas por não terem alma ou por serem amaldiçoadas e hospedarem demônios. Se não tinham alma, a eliminação podia ser legitimada diante de Deus. Ainda hoje algumas tribos eliminam crianças doentes e excepcionais; em nosso meio os menos favorecidos financeira, imagética e mentalmente vão ficando à margem do convívio.

A sociedade é cruel e sectarista escolhendo sempre pelos padrões de “normalidade” e perfeição; abrindo um insignificante caminho para os pobres, humilhados, feios, doentes, passarem. Quanto menos barulho e estragos fizerem, melhor. E quanto menos ajuda precisarem, melhor ainda.

O grande foco do Novo Testamento é o perdão de pecados. As pessoas faziam relação entre pecado e enfermidade. Quando um paralítico é colocado perante Jesus numa situação bem constrangedora e delicada descendo pelo teto, Jesus diz que seus pecados estão perdoados. O que era mais importante? Perdoar pecados ou curar enfermidade? Jesus mostra que tem autoridade para perdoar, e não só perdoar como reverter todo o quadro da vida de uma pessoa, fazendo com que ela se levantasse e retomasse a sua vida, não precisando mais daquele velho leito.

Mas o que me chama mais atenção nessa história (Mt 9.1, Mc 2.1, Lc 5.17) é que Jesus viu quão grande era a fé daquelas pessoas que carregavam o paralítico. Os textos não fazem especificamente menção à fé do homem na maca, apesar de Jesus contemplar o que havia em seu coração; a única coisa que sabemos é que ele se levantou imediatamente e deu glórias a Deus segundo o texto de Lucas.

Algumas pessoas se reúnem para ajudar outra pessoa que não podia andar, que provavelmente era um morto-vivo; sem condições de trabalhar e relacionar-se com outros. Estas pessoas decidem chegar perto de Jesus de qualquer jeito e como havia muitas dificuldades, elas fazem um buraco no teto. Jesus olha o que outros iriam ver como confusão, loucura, coisa de ladrões, e avalia a fé dos homens que carregavam. Aqueles homens eram portadores espirituais. Se importavam com o paralítico; não queriam saber da vergonha que estavam passando, eles queriam que ele fosse curado.

Estamos entrando em tempos cada vez mais difíceis, em que os filhos têm vergonha dos pais; os cônjuges já não se olham mais; os que não se encaixam no perfil de beleza devem ser eliminados do grupo; um tempo em que a igreja está tão focada no belo, em eventos marcantes que se esquece de ser a maca do homem, provavelmente feio e sem forças, que não consegue chegar perto de Jesus sozinho. 

O Cordeiro Perfeito Jesus fez um único sacrifício por nós, tornando desnecessário qualquer outro tipo de sacrifício. Jesus toca nas pessoas sejam elas doentes, feridas, mal-cheirosas ou não. Ele traz a pedagogia do amor, da insistência, do educar acreditando na capacidade de compreensão. Isto mostra pra nós que a maior honra que temos é ser o portador daquele que não consegue ir sozinho. É ser o samaritano a beira do caminho; é continuar orando pelo que não parece ter jeito. A Igreja de Cristo é convidada a pregar para o sujo e enfermo e ter um olhar mais apurado para o que realmente importa, oportunizando o crescimento e desenvolvimento das pessoas; lutando contra a eliminação daquilo que consideramos fora do padrão aceitável, pois foi para os doentes que Ele veio.
Hev